quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Chorar com os passarinhos

Sim, eu choro e não tenho vergonha disto. Em 1998, chorei muito quando assisti o premiado documentário de Neide Duarte, Do Peso de um Passarinho. Eram outros tempos, que eu não queria que voltassem nunca.

"Não acredito... é 9 quilos e 900. É 9 kg e 900, quer dizer..."
— Quantos anos ela tem?
"Ela tem 4 anos e 2 meses, ela deveria pesar pesar 14, a 15 kg, no mínimo."
— É um caso de desnutrição de que grau?
"De 3o grau. É o grau mais grave de desnutrição."

O céu estava ameaçador. Céu de tragédia no cinema.
Eu ia anotando os números da vida de Rogério.
Ele tem 2 anos e 4 meses, mas não tem palavras. Também não anda, nem engatinha.
— Eles comem o que?
"Aí pronto, bebe um caneco de água e vão pra escola. Que água ainda tem né?
— Então tem dias que eles não comem nada?
Dia que eles não come nada.
Tem dia que vão pra escola, vão com fome e quando chega, não tem o que comê, vão dormir com fome." - Maria Aparecida Nascimento - mãe de Rogério.

Em 1997 das mil crianças nascidas vivas, 147 morreram. Para a Organização Mundial de Saúde esse número não poderia ser maior do que 10 mortes para cada mil nascidos vivos.
"Isso me assustou bastante, porque eu vinha de uma região que não tinha essa mortalidade. Então, quando eu vim, morrendo essa quantidade de criança, rápido e quando eu vi que elas tinham aquela fisionomia até esquelética, daquelas crianças que existem na África, eu comecei a me assustar." - Maria da Paz Pimentel - Gerente da Visão Mundial

Anos depois, chorei muito também mas era um choro de esperança. Estávamos, Alexandra Escóssia e eu, em plena Avenida Paulista bem em frente ao palanque onde o futuro presidente Lula faria seu primeiro discurso após a confirmação de sua vitória nas eleições de 2002. Lembrei-me dos comícios do PT na década de 80 no centro de Natal, Rubens Lemos discursando para alguns gatos pingados, entre eles eu. Lembrei-me de 1989, quando panfletava com a linda canção "Lula-lá, cresce a esperança, é a gente junto, valeu a espera, meu primeiro voto pra fazer bilhar a nossa estrela". Lembrei-me de como a Rede Globo influenciou o resultado da primeira eleição presidencial após a ditadura militar, ao preparar e editar o último debate, exibindo à exaustão para favorecer o candidato que ajudou a fabricar (só fui entender plenamente isto ao ler Notícias do Planalto, de Mario Sergio Conti) e da minha grande frustração com a derrota que nos foi imposta na marra. E lembrei-me, principalmente, das crianças mostradas por Neide Duarte em seu documentário. Elas nunca me saíram da memória. E aí foi que chorei ainda mais, porque sabia que aquele tempo de miséria humana, de desigualdade, de violação dos direitos humanos haveria de passar, como prenunciara o grande poeta:
"Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações..."

Hoje sei que estava certo e agradeço a todos aqueles que, como eu, acreditaram. Agradeço ao Presidente Lula, agradeço à Presidenta Dilma, agradeço ao Partido dos Trabalhadores por terem mudado a triste realidade do meu país. E justamente por gratidão e por querer que esta mudança continue é que, orgulhosamente, voto Dilma, voto 13, voto PT. E abro meu coração nesta mensagem para que as novas gerações, que têm esta triste passagem já desbotada em sua memória, entendam que mudamos juntos o Brasil e mudaremos ainda mais. Certamente chorarei ao digitar meu 13 na urna eletrônica, por saber que estamos construindo um país cada vez mais justo.
(Eider Dantas Do O, 22/Out/2014)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O “ciclo arturiano” (Flávio Brayner)

Flávio Brayner

Publicado no Jornal do Commercio (Recife/PE) em 11/SET/2014


As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que nos forneciam uma concepção de “homem”

Li em algum lugar que nosso mais alto laureado acadêmico, o medalhista Fields – Artur Ávila – não gosta de ler! Confessou, aliás, que o último livro que tentou, mas não passou das primeiras páginas, foi O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), “lá por 2008 ou 2009!”
Receio que meus colegas das ciências “exatas”, altos representantes da neo-espécie homo technologicus, tenham agora o argumento de que precisavam para desqualificar o que ainda resta de cultura humanista nas Universidades. Imagino mesmo um de meus colegas titulares diante de sua turma de, digamos, Física ou Estatística: Nosso Artur, que não lê nada além de física dos sistemas dinâmicos, é medalhista exatamente porque não perdeu tempo com baboseiras a respeito desta coisa frouxa e imprecisa chamada “Humanidades”. E eis como é que oitocentos anos depois da lenda bretã da Tavola Redonda, está se iniciando nosso Ciclo Arturiano!
Ainda me admira muito que haja médicos-escritores, físicos que conhecem latim, químicos com formação musical (o tempo dos Primo Levi, Robert Musil, Elias Canetti chegou definitivamente ao fim)..., e embora possamos ter, depois de Heidegger, sérias dúvidas a respeito do “Humanismo” e da forma como ele concebeu a ideia moderna de Homem (com maiúscula), e às vezes tenhamos que admitir que as “Humanidades não humanizam” (G. Steiner), talvez possamos refletir por um instante sobre o que perdemos (se é que de fato perdemos!) quando o frenesi tecnológico de nosso tempo não se faz acompanhar dos devaneios humanistas (que o homo technologicus diz tratar-se apenas de “ideologias”).
Quando o dramaturgo alemão B. Brecht refez, pela terceira vez, o drama A vida de Galileu, ele afirmava ter sido influenciado por uma entrevista de Otto Oppenheimer que, ao ser perguntado sobre sua participação no Projeto Mannhatan (bomba atômica), respondeu que “(...) era um cientista e, como tal, estava apenas interessado no progresso da ciência. O que os militares ou os políticos fariam disto, não era assunto dele!”. A terceira versão de Brecht tratou exatamente da relação entre a ciência e as consequências sociais de seu uso. Ou seja: a avaliação moral dos conteúdos de nosso saber. O perigo estava naquela afirmação de Galileu (O ensaiador) de que “Deus escreveu o universo em linguagem matemática!”, o que significava que os matemáticos estavam, não apenas mais perto de Deus como podiam até, caso Ele desse uma palhinha, conversar com Ele sobre a Criação... Não é, pois, à toa que os matemáticos se achem meio “divinos” (os estatísticos também!).
Se tivesse lido o célebre livro de Wilde, nosso Artur talvez compreendesse o dilema faustiano que o romance levanta: a juventude e a beleza em troca do prazer hedonista, sensual e dissoluto que uma – aparentemente – eterna juventude lhe permite: um relato irônico e desencantado sobre a relação entre decadência e aparência no interior de uma sociedade moralista (vitoriana), da qual o próprio Wilde será sua desgraçada vítima.
As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que elas nos forneciam uma concepção de “homem”, boa ou má, e as ferramentas que nos ajudavam a avaliar moralmente os fins e os valores de nossas ações técnicas. Ciência sem consciência moral nos dá aquela mesma sensação que deve ter experimentado o Dorian Gray: uma gostosa irresponsabilidade de quem, por estar mais perto de Deus, não precisa dar satisfação aos homens.
(Flávio Brayner é professor titular da UFPE)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sobre Che Guevara, Darcy Ribeiro, Celso Lungaretti e a revista veja

Encontrei involuntariamente há pouco, numa busca que fiz na internet, este meu comentário no sítio do Observatório de Imprensa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/revista-mira-guevara-e-da-tiro-no-pe), no quase longínquo 2007, sobre reportagem de capa revista veja (que teimo em grifar em letras minúsculas) de Outubro daquele ano, quando se completaram 40 anos da morte de Ernesto Che Guevara. Gostei de reler, nem me lembrava dele, e quis registrá-lo aqui.

Eider Dantas do Ó
 Enviado em: 03/10/2007 07:38:43
Como amante da boa leitura, da história, da verdade dos fatos e da boa imprensa, só tenho a lastimar a reportagem de capa da última edição da revista veja. A começar pela legenda de uma das fotos, "sua vida foi uma seqüência de fracassos". Mesmo que fosse verdadeira a afirmação, valeria para Che Guevara, o que bem disse Darcy Ribeiro, ao dedicar o título de Doutor Honoris Causa pela universidade francesa de Sorbonne, às suas "derrotas": "Somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas detestaria estar no lugar de quem venceu". Possivelmente, o que mais incomode veja em sua visão maniqueísta e que tenha sido o motor desta "reportagem investigativa" seja sua crença explicitada na carta ao leitor que abre a edição: "o herói romântico Che é um instrumento facilitador da doutrinação que continuam a fazer em escolas e universidades". Esquece-se veja que estamos em outros tempos, a página da história foi virada, apesar da revista não querer aceitar tal fato e ansiar por uma recaída totalitária. Quanto mais o braço empresarial da editora abril se expande mais a revista se afasta do bom jornalismo. Tristes dos leitores que ainda não se aperceberam disto. Talvez nem devesse ser mencionada neste Observatório, pois há muito deixou de ser jornalismo para ser panfleto da pior qualidade. Excelente e oportuno este artigo de Celso Lungaretti sobre a tal "reportagem".

domingo, 30 de dezembro de 2012

A Lista de Mindlin

O bibliófilo paulista José Mindlin recomenda estes dez livros como obras básicas para quem deseja se iniciar nos prazeres da leitura:
  1. Crime e Castigo, Fiodor Dostoievski
    Ao contar a história de um jovem que mata uma idosa para roubar e vive atormentado pela culpa, o escritor russo discute a relação entre liberdade e normas sociais.
  2. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
    O defunto que relembra sua vida permite ao autor brasileiro refletir sobre o vazio da existência humana.
  3. A Montanha Mágica, Thomas Mann
    Os personagens do autor alemão discutem as grandes questões do século XX _ liberdade, totalitarismoe guerra.
  4. Ensaios, Montaigne
    Misto de diário e memórias, trata de temas essenciais, como a morte e o amor, e tece o elogio da amizade.
  5. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
    Em sete volumes, reflete sobre a doença do narrador, o tempo, a música, a literatura e o próprio ato de escrever.
  6. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
    O herói que sonha ser cavaleiro andante é meio doido, mas não desprovido de virtudes, como coragem, independência de espírito e compaixão.
  7. Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
    Sátira mordaz sobre a estupidez de certas convenções sociais e a mesquinharia humana.
  8. Hamlet, William Shekespeare
    A tragédia do príncipe dinamarquês contém o famoso monólogo "Ser ou não ser".
  9. Guerra e Paz, Leon Tolstoi
    O romance debruça-se sobre o impacto dos grandes eventos históricos na vida de cada homem
  10. Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa
    Em linguagem inovadora, que recria a fala sertaneja, o autor conta histórias de guerra, misticismo, amor e vingança.
Estes são todos os 100 livros recomendados por José Mindlin:
  • As mil e uma noites
  • Bagagem (Adélia Prado)
  • Le Grand Meaulnes (Alain-Fournier)
  • A peste (Albert Camus)
  • Os três mosqueteiros (Alexandre Dumas)
  • A ilha dos pinguins (Anatole France)
  • Formação da Literatura Brasileira (Antonio Cândido)
  • Sermões (Antonio Vieira)
  • A Torre do Orgulho (Barbara Tuchman)
  • A Flor do Mal (Baudelaire)
  • Teatro (Beaumarchais)
  • Adolfo (Benjamin Constant)
  • Teatro (Bernard Shaw)
  • Decameron (Boccacio)
  • Poesia (Carlos Drummond de Andrade)
  • Poesias (Castro Alves)
  • Poesias (Cecília Meirelles)
  • Memórias (Cgiacomo Casanova)
  • Grandes Esperanças (Charles Dickens)
  • Romances e contos (Chekov)
  • O Amanuense Belmiro (Cyro dos Anjos)
  • Robinson Crusoe (Daniel Defoe)
  • Jacques, o fatalista (Diderot)
  • Crime e Castigo (Dostoiewski)
  • Os Maias (Eça de Queiroz)
  • Poesia (Elizabeth Barrett Browning)
  • Poesia (Emili Dickinson)
  • O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Bronte)
  • O Tempo e o Vento (Érico Veríssimo)
  • Teatro (Eschyle)
  • Teatro (Eurípedes)
  • Poesia (Fernando Pessoa)
  • Tom Jones (Fielding)
  • O Processo (Franz Kafka)
  • Cem anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez)
  • Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre)
  • Romances (Gogol)
  • Poesia Completa (Gonçalves Dias)
  • Vidas Secas (Graciliano Ramos)
  • Poemas (Gregório de Mattos)
  • Grande Sertão Veredas (Guimarães Rosa)
  • Educacion Sentimental (Gustave Flaubert)
  • Contos (Guy de Maupassant)
  • Minha Vida de Menina (Helena Morley)
  • O Lobo da Estepe (Herman Hesse)
  • Odisséa/Ilíada (Homero)
  • Comédia Humana (Honoré de Balzac)
  • Orgulho e Preconceito (Jane Austen)
  • Confissões-Origem da Desigualdade (Jean Jacques Rousseau)
  • Poesia (João Cabral de Mello Neto)
  • A Morte e a Morte de Quincas Berro D´agua (Jorge Amado)
  • A Biblioteca de Babel (Jorge Luis Borges)
  • O Guarani (Jose de Alencar)
  • Menino de Engenho (Jose Lins do Rego)
  • Lord Jim (Joseph Conrad)
  • Rayuela (Julio Cortazar)
  • Contos e Novelas (La Fontaine)
  • Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto)
  • Os Lusíadas (Luíss de Camões)
  • Memórias Póstumas de Braz Cubas (Machado de Assis)
  • Memórias de Um Sargento de Milícias (Manoel Antonio de Almeida)
  • Gramática Expositiva do Chão (Manoel de Barros)
  • Poesia (Manuel Bandeira)
  • Em Busca do Tempo Perdido (Marcel Proust)
  • Macunaíma (Mario de Andrade)
  • Teatro (Marivaux)
  • Dom Quixote (Miguel de Cervantes)
  • Teatro (Moliere)
  • Ensaios (Montaigne)
  • Cartas Persas (Montesquieu)
  • A Carta Escarlate (Nathaniel Howthorne)
  • Poesia (Olavo Bilac)
  • Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade)
  • Poesias (Paul Eluar)
  • Poemas (Paul Verlaine)
  • Retrato do Brasil (Paulo Prado)
  • As Memórias (Pedro Nava)
  • Diálogos (Platão)
  • O Quinze (Rachel de Queiroz)
  • O Ateneu (Raul Pompéia)
  • Poesia (Rimbaud)
  • Raízes do Brasil (Sergio Buarque de Hollanda)
  • Teatro (Sófocles)
  • O vermelho e o negro (Stendhal)
  • Tristram Shandy (Sterne)
  • Gulliver (Swift)
  • A Montanha Mágica (Thomas Mann)
  • Guerra e Paz (Tolstoi)
  • Romances (Turguenev)
  • Conversa na Catedral (Vargas Llosa)
  • Poemas (Vicente de Carvalho)
  • Os Miseráveis (Victor Hugo)
  • Poesia (Vinicius de Moraes)
  • Eneida (Virgílio)
  • Orlando (Virginia Woolf)
  • Romances (Voltaire)
  • Teatro (William Shakespeare)

José Ephim Mindlin (São Paulo, 8 de setembro de 1914 — São Paulo, 28 de fevereiro de 2010) foi um advogado, empresário e bibliófilo brasileiro.
Filho do dentista Ephim Mindlin e de Fanny Mindlin, judeus nascidos em Odessa, formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogou por alguns anos, atividade que deixou para fundar a empresa Metal Leve, que mais tarde se tornou uma potência nacional no setor de peças para automóveis. José Mindlin deixou a empresa em 1996. Posteriormente, entre outras atividades, presidiu a Sociedade de Cultura Artística.
Após sua aposentadoria do mundo empresarial, Mindlin pôde dedicar-se integralmente a uma paixão que tinha desde os treze anos de idade: colecionar livros raros. Seu primeiro livro foi Discours sur l'Histoire universelle de Jacques-Bénigne Bossuet, de 1740.
Ao completar 95 anos de idade, acumulava um acervo de aproximadamente 40 mil volumes.
Em 20 de junho de 2006 Mindlin foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, onde passou a ocupar a cadeira número 29, sucedendo a Josué Montello. Após saber da vitória na eleição, Mindlin declarou: "De certa forma, corôa uma vida dedicada aos livros". Neste mesmo ano, Mindlin decidiu doar todas as obras brasileiras da vasta coleção à Universidade de São Paulo (USP). A partir de então, ela passou a ser chamada de "Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin".

Bibliografia:
 

Revista Veja, Edição de 25 de agosto de 2004: Editora Abril, 2004

Wikipedia - José Mindlin

Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Mindlin
Visitado em: 30 de dezembro de 2012 

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O serviço dos pobres acima de tudo

Não temos de avaliar os pobres por suas roupas e aspecto, nem pelos dotes de espírito que pareçam ter. Com frequência são ignorantes e curtos de inteligência. Mas muito pelo contrário, se considerardes os pobres à luz da fé, então percebereis que estão no lugar do Filho de Deus que escolheu ser pobre. De fato, em seu sofrimento, embora quase perdesse a aparência humana - loucura para os gentios, escândalo para os judeus - apresentou-se, no entanto, como evangelizador dos pobres: Enviou-me para evangelizar os pobres (Lc 4,18). Devemos ter os mesmos sentimentos de Cristo e imitar aquilo que ele fez: ter cuidado pelos indigentes, consolá-los, auxiliá-los, dar-lhes valor.
Com efeito, Cristo quis nascer pobre, escolheu pobres para seus discípulos, fez-se servo dos pobres e de tal forma quis participar da condição deles, que declarou ser feito ou dito a ele mesmo tudo quanto de bom ou de mau se fizesse ou dissesse aos pobres. Deus ama os pobres, também ama aqueles que os amam. Quando alguém tem um amigo, inclui na mesma estima aqueles que demonstraram amizade ou prestam obséquio ao amigo. Por isso esperamos que, graças aos pobres, sejamos amados por Deus. Visitando-os, pois, esforcemo-nos por entender os pobres e os indigentes e, compadecendo-nos deles, cheguemos ao ponto de poder dizer com o Apóstolo: Fiz-me tudo para todos (1Cor 9,22). POr este motivo, se é nossa intenção termos o coração sensível às necessidades e misérias do próximo, supliquemos a Deus que derrame em nós o sentimento de misericórdia e de compaixão, cumulando com ele nossos corações e guardando-os repletos.
Deve-se preferir o serviço dos pobres a tudo o mais e prestá-lo sem demora. Se na hora da oração for necessário dar remédios ou auxílio a algum pobre, ide tranquilos, oferecendo esta ação a Deus como se estivésseis em oração. Não vos pertubeis com angústia ou medo de estar pecando por causa do abandono da oração em favor do serviço aos pobres. Deus não é desprezado, se por causa de Deus dele nos afastarmos, quer dizer, interrompermos a obra de Deus para realizá-la de outro modo.
Portanto, ao abandonardes a oração, a fim de socorrer a algum pobre, isto  mesmo vos lembrará que o serviço é prestado a Deus. Pois a caridade é maior do que quaisquer regras que, além do mais, devem todas tender a ela. E como a caridade é uam grande dama, faz-se necessário cumprir o que ordena. Por conseguinte, prestemos com renovado ardor nosso serviço aos pobres; de modo particular aos abandonados, indo mesmo à procura, pois nos foram dados como senhores e protetores.

Dos Escritos de São Vicente de Paulo, presbítero (século XVII)
São Vicente de Paulo fundou a Congregação da Missão (Lazaristas), destianda à formaçã do clero e
ao serviço aos pobres. Instituiu também a Congregação das Filhas da Caridade. Morreu em Paris, 27 de Setembro de 1660.

Extraído do blog "Tesouros da Igreja Católica", de Miguel Fornari, que contém textos escritos ao longo dos séculos por santos e mártires, que formam um verdadeiro tesouro da Igreja Católica.
Acompanho o blog, leio os posts diariamente e recomendo a todos os irmãos.
Obrigado, Miguel Fornari, por tão valiosa contribuição.
Disponível em http://tesourosdaigrejacatolica.blogspot.com/2011/09/o-servico-dos-pobres-acima-de-tudo.html

Balanço Geral (Pe Zezinho)

Imagine que sua vida seja tão interessante ou mais interessante que a minha. Quero crer que seus relacionamentos sejam até melhores do que os meus. Mas chego aos 68anos de idade e a mais de 45 anos lidando diretamente com as pessoas, todo tipo de pessoa.
Num balanço geral desses relacionamentos, conheci de tudo, aqui e no exterior. Deram-me chances e oportunidades, puxaram meu tapete, cederam o seu lugar, tomaram o meu lugar, ajudaram-me, roubaram de mim, elogiaram-me, defenderam-me, caluniaram-me, tentaram me destruir, tentaram me salvar, permaneceram fiéis, traíram, prometeram e cumpriram, prometeram e não cumpriram. Intencionalmente tentaram me ferir, tentaram me curar as feridas, oraram por mim, oraram contra mim, contaram verdades, inventaram inverdades, quiseram me ouvir, não quiseram me ouvir, gritaram aos meus ouvidos, falaram com serenidade, estenderam-me a mão, negaram-me a mão.
Conheci de tudo e, em todos os casos, Deus me deu a graça de entender que o outro era quem era. As pessoas não nos amam do jeito que gostamos, mas do jeito que elas sabem amar. As que sabem amar melhor do que nós nos enriquecem. As que amam menos do que nós, às vezes nos ferem, porque são quem são, e não adianta querer mudá-las por palavras firmes, fortes, violentas ou por decreto. Na maioria dos casos, quando fui ferido, fiquei quieto, deixei que os fatos tomassem a sua devida dimensão.
Não sou Deus, não quero brincar de Deus e levo muito a sério Mateus 7,1-2. Não posso julgar quem me julga, ferir quem me fere, puxar o tapete de quem puxa o meu, nem devolver com violência as agressões que recebo. Posso apenas avisar que vou reagir e que não me deixarei encurralar. Mas devo, como cristão, responder sempre com menor grau de violência do que com aquele grau de que sou vítima.

O meu lugar – Enfim, responder sim, mas não com a mesma violência, defender-me sim. Mas, se não for possível, oro e coloco a pessoa nas mãos de Deus. Já pus muitos que pretendiam me destruir nas mãos de Irmãs Carmelitas, e pedi que orassem por essas pessoas feridas, magoadas e com ódio. Em geral, deu tudo certo, porque o amor – e eu acredito firmemente nessa verdade – o amor liberta. Liberta a vítima e o algoz. Levo muito a sério a frase de Jesus: “Perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Espero que eu saiba.
Num balanço geral, diria que mais perdi do que venci. Em alguns momentos da minha jornada venci, em outros perdi. Feitos os cômputos, acho que sou um vencedor. Soube perder quando perdi, soube vencer quando venci. Continuo querendo não ser o primeiro, nem o maior, nem o melhor. Quero apenas o meu lugar. E, se alguém o quiser, eu o entrego de boa vontade, até porque este alguém não vai saber o que fazer co ele, já não é lugar dele. E eu também não saberia o que fazer com o lugar que não é meu.
Tenho orado a Deus para que me dê a graça de saber a minha dimensão e o meu lugar. Não há nada mais bonito nem mais feliz. Eu sou eu no meio de outros que também são eles mesmos.

José Fernandes de Oliveira, scj (Padre Zezinho) pertence à Congregação do Sagrado Coração de Jesus, é escritor, compositor, cantor e dedica-se à Pastoral da Comunicação.
Revista Família Cristã – Setembro de 2010

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Onde Há Deus, Há Futuro (Dom Murilo Krieger - Primaz do Brasil)

Onde há Deus, há futuro
Dom Murilo S.R. Krieger, Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil

Dias atrás, antes de deixar Roma para a terceira visita que faria a seu país natal – visita que termina hoje –, o Papa Bento XVI falou ao povo alemão pela televisão. Disse-lhe que o sentido de sua visita estava sintetizado no lema que nortearia seus encontros: “Onde há Deus, há futuro”. Em outras palavras: é necessário que Deus volte ao horizonte da vida de todos, já que, embora tenhamos necessidade dele, muitos o ignoram. Mesmo os que não o ignoram, por vezes se perguntam: Será que Deus existe realmente? E se existe, se ocupa realmente de nós? Podemos atingi-lo?

Há os que dizem que só acreditariam em Deus se pudessem encontrá-lo, tocá-lo e tomá-lo nas mãos como se pode fazer com qualquer objeto. “Temos que desenvolver de novo a capacidade de percepção de Deus, capacidade que existe em nós. Podemos intuir algo da grandeza de Deus na grandeza do cosmos.” Sim, “na grande racionalidade do mundo podemos intuir o espírito criador do qual esse espírito provém; na beleza da criação podemos intuir alguma coisa da beleza, da grandeza e da bondade de Deus. Na Palavra das Sagradas Escrituras podemos ouvir palavras de vida eterna, que não vêm simplesmente de homens, mas do Senhor”, afirmou Bento XVI.

Há um outro tipo de experiência de Deus que poderemos fazer: no encontro com pessoas que foram transformadas por Ele. Pensemos, por exemplo, no apóstolo Paulo ou em Francisco de Assis, em Madre Teresa de Calcutá, em Irmã Dulce ou em Irmã Lindalva. Podemos pensar igualmente em pessoas simples, desconhecidas do povo em geral e ignoradas pelos meios de comunicação social. Quando as encontramos, sentimos que delas nasce uma força que nos emociona, uma bondade que toca nosso coração, uma alegria que nos contagia. Temos certeza de que nelas Deus está presente. “Por isso, nestes dias desejamos empenhar-nos para tornar a ver Deus, para fazer com que nós mesmos sejamos pessoas através das quais entre no mundo a luz de esperança - luz que vem de Deus e que nos ajuda a viver” (Bento XVI).

Poderíamos pensar que a questão do ateísmo não seja um problema nosso, brasileiro, ao menos a ponto de nos preocupar. Ledo engano. A Fundação Getúlio Vargas apresentou, semanas atrás, um mapa das religiões aqui no Brasil, destacando que cresceu entre nós o número de ateus: atualmente, são 6,7% da população. Não é uma cifra desprezível: tendo nosso pais 190 milhões de habitantes, o número de ateus deve girar, pois, em torno de treze milhões de pessoas.

Saramago, famoso escritor português, prêmio Nobel de Literatura, falecido há pouco mais de um ano, declarava-se ateu. Dada a sua fama, era frequentemente entrevistado sobre isso. Numa dessas entrevistas, observou que “ Bento XVI jamais viu Deus e nunca se sentou para tomar um café com ele”. Se tivesse me conhecido (e haveria razão para isso?...), o mesmo ele poderia ter dito de mim. Sou cristão desde o nascimento; trabalho na Igreja desde criança e também nunca vi Deus. No entanto, alegro-me em poder servi-lo. Não que ele precise de mim; eu é que me realizo colocando minha vida a serviço do Evangelho de Seu Filho.

Um Evangelho que nada tem em comum com aquele que o próprio Saramago escreveu, no começo da década de noventa. Identifico-me com a definição que o apóstolo e evangelista João apresentou de Deus, fruto de sua longa caminhada de fé: “Deus é amor”. Se Saramago ou qualquer pessoa me pedisse explicações sobre essa afirmação, me sentiria tentado a escrever um livro ou, então, a repetir o que Teresa de Calcutá disse a um repórter que lhe perguntou o que é rezar. Ela lhe disse: “É falar com Deus”. Quando o repórter lhe perguntou: “E o que Ele lhe diz, quando a senhora fala com Ele?” Ela lhe respondeu: “Ele não me fala; Ele me escuta. E se o senhor não for capaz de entender isso, nem eu serei capaz de lhe explicar”.

Também não saberei explicar quem é Deus. Sei, apenas, que não saberia viver sem Ele. Encontro-o na Igreja, na Bíblia, no próximo, na alegria e na dor. E, simplesmente, o amo. Sei que Ele me amou por primeiro. Como diria Santo Anselmo: “Eu creio para compreender”...