sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O “ciclo arturiano” (Flávio Brayner)

Flávio Brayner

Publicado no Jornal do Commercio (Recife/PE) em 11/SET/2014


As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que nos forneciam uma concepção de “homem”

Li em algum lugar que nosso mais alto laureado acadêmico, o medalhista Fields – Artur Ávila – não gosta de ler! Confessou, aliás, que o último livro que tentou, mas não passou das primeiras páginas, foi O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), “lá por 2008 ou 2009!”
Receio que meus colegas das ciências “exatas”, altos representantes da neo-espécie homo technologicus, tenham agora o argumento de que precisavam para desqualificar o que ainda resta de cultura humanista nas Universidades. Imagino mesmo um de meus colegas titulares diante de sua turma de, digamos, Física ou Estatística: Nosso Artur, que não lê nada além de física dos sistemas dinâmicos, é medalhista exatamente porque não perdeu tempo com baboseiras a respeito desta coisa frouxa e imprecisa chamada “Humanidades”. E eis como é que oitocentos anos depois da lenda bretã da Tavola Redonda, está se iniciando nosso Ciclo Arturiano!
Ainda me admira muito que haja médicos-escritores, físicos que conhecem latim, químicos com formação musical (o tempo dos Primo Levi, Robert Musil, Elias Canetti chegou definitivamente ao fim)..., e embora possamos ter, depois de Heidegger, sérias dúvidas a respeito do “Humanismo” e da forma como ele concebeu a ideia moderna de Homem (com maiúscula), e às vezes tenhamos que admitir que as “Humanidades não humanizam” (G. Steiner), talvez possamos refletir por um instante sobre o que perdemos (se é que de fato perdemos!) quando o frenesi tecnológico de nosso tempo não se faz acompanhar dos devaneios humanistas (que o homo technologicus diz tratar-se apenas de “ideologias”).
Quando o dramaturgo alemão B. Brecht refez, pela terceira vez, o drama A vida de Galileu, ele afirmava ter sido influenciado por uma entrevista de Otto Oppenheimer que, ao ser perguntado sobre sua participação no Projeto Mannhatan (bomba atômica), respondeu que “(...) era um cientista e, como tal, estava apenas interessado no progresso da ciência. O que os militares ou os políticos fariam disto, não era assunto dele!”. A terceira versão de Brecht tratou exatamente da relação entre a ciência e as consequências sociais de seu uso. Ou seja: a avaliação moral dos conteúdos de nosso saber. O perigo estava naquela afirmação de Galileu (O ensaiador) de que “Deus escreveu o universo em linguagem matemática!”, o que significava que os matemáticos estavam, não apenas mais perto de Deus como podiam até, caso Ele desse uma palhinha, conversar com Ele sobre a Criação... Não é, pois, à toa que os matemáticos se achem meio “divinos” (os estatísticos também!).
Se tivesse lido o célebre livro de Wilde, nosso Artur talvez compreendesse o dilema faustiano que o romance levanta: a juventude e a beleza em troca do prazer hedonista, sensual e dissoluto que uma – aparentemente – eterna juventude lhe permite: um relato irônico e desencantado sobre a relação entre decadência e aparência no interior de uma sociedade moralista (vitoriana), da qual o próprio Wilde será sua desgraçada vítima.
As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que elas nos forneciam uma concepção de “homem”, boa ou má, e as ferramentas que nos ajudavam a avaliar moralmente os fins e os valores de nossas ações técnicas. Ciência sem consciência moral nos dá aquela mesma sensação que deve ter experimentado o Dorian Gray: uma gostosa irresponsabilidade de quem, por estar mais perto de Deus, não precisa dar satisfação aos homens.
(Flávio Brayner é professor titular da UFPE)