quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Chorar com os passarinhos

Sim, eu choro e não tenho vergonha disto. Em 1998, chorei muito quando assisti o premiado documentário de Neide Duarte, Do Peso de um Passarinho. Eram outros tempos, que eu não queria que voltassem nunca.

"Não acredito... é 9 quilos e 900. É 9 kg e 900, quer dizer..."
— Quantos anos ela tem?
"Ela tem 4 anos e 2 meses, ela deveria pesar pesar 14, a 15 kg, no mínimo."
— É um caso de desnutrição de que grau?
"De 3o grau. É o grau mais grave de desnutrição."

O céu estava ameaçador. Céu de tragédia no cinema.
Eu ia anotando os números da vida de Rogério.
Ele tem 2 anos e 4 meses, mas não tem palavras. Também não anda, nem engatinha.
— Eles comem o que?
"Aí pronto, bebe um caneco de água e vão pra escola. Que água ainda tem né?
— Então tem dias que eles não comem nada?
Dia que eles não come nada.
Tem dia que vão pra escola, vão com fome e quando chega, não tem o que comê, vão dormir com fome." - Maria Aparecida Nascimento - mãe de Rogério.

Em 1997 das mil crianças nascidas vivas, 147 morreram. Para a Organização Mundial de Saúde esse número não poderia ser maior do que 10 mortes para cada mil nascidos vivos.
"Isso me assustou bastante, porque eu vinha de uma região que não tinha essa mortalidade. Então, quando eu vim, morrendo essa quantidade de criança, rápido e quando eu vi que elas tinham aquela fisionomia até esquelética, daquelas crianças que existem na África, eu comecei a me assustar." - Maria da Paz Pimentel - Gerente da Visão Mundial

Anos depois, chorei muito também mas era um choro de esperança. Estávamos, Alexandra Escóssia e eu, em plena Avenida Paulista bem em frente ao palanque onde o futuro presidente Lula faria seu primeiro discurso após a confirmação de sua vitória nas eleições de 2002. Lembrei-me dos comícios do PT na década de 80 no centro de Natal, Rubens Lemos discursando para alguns gatos pingados, entre eles eu. Lembrei-me de 1989, quando panfletava com a linda canção "Lula-lá, cresce a esperança, é a gente junto, valeu a espera, meu primeiro voto pra fazer bilhar a nossa estrela". Lembrei-me de como a Rede Globo influenciou o resultado da primeira eleição presidencial após a ditadura militar, ao preparar e editar o último debate, exibindo à exaustão para favorecer o candidato que ajudou a fabricar (só fui entender plenamente isto ao ler Notícias do Planalto, de Mario Sergio Conti) e da minha grande frustração com a derrota que nos foi imposta na marra. E lembrei-me, principalmente, das crianças mostradas por Neide Duarte em seu documentário. Elas nunca me saíram da memória. E aí foi que chorei ainda mais, porque sabia que aquele tempo de miséria humana, de desigualdade, de violação dos direitos humanos haveria de passar, como prenunciara o grande poeta:
"Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações..."

Hoje sei que estava certo e agradeço a todos aqueles que, como eu, acreditaram. Agradeço ao Presidente Lula, agradeço à Presidenta Dilma, agradeço ao Partido dos Trabalhadores por terem mudado a triste realidade do meu país. E justamente por gratidão e por querer que esta mudança continue é que, orgulhosamente, voto Dilma, voto 13, voto PT. E abro meu coração nesta mensagem para que as novas gerações, que têm esta triste passagem já desbotada em sua memória, entendam que mudamos juntos o Brasil e mudaremos ainda mais. Certamente chorarei ao digitar meu 13 na urna eletrônica, por saber que estamos construindo um país cada vez mais justo.
(Eider Dantas Do O, 22/Out/2014)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O “ciclo arturiano” (Flávio Brayner)

Flávio Brayner

Publicado no Jornal do Commercio (Recife/PE) em 11/SET/2014


As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que nos forneciam uma concepção de “homem”

Li em algum lugar que nosso mais alto laureado acadêmico, o medalhista Fields – Artur Ávila – não gosta de ler! Confessou, aliás, que o último livro que tentou, mas não passou das primeiras páginas, foi O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), “lá por 2008 ou 2009!”
Receio que meus colegas das ciências “exatas”, altos representantes da neo-espécie homo technologicus, tenham agora o argumento de que precisavam para desqualificar o que ainda resta de cultura humanista nas Universidades. Imagino mesmo um de meus colegas titulares diante de sua turma de, digamos, Física ou Estatística: Nosso Artur, que não lê nada além de física dos sistemas dinâmicos, é medalhista exatamente porque não perdeu tempo com baboseiras a respeito desta coisa frouxa e imprecisa chamada “Humanidades”. E eis como é que oitocentos anos depois da lenda bretã da Tavola Redonda, está se iniciando nosso Ciclo Arturiano!
Ainda me admira muito que haja médicos-escritores, físicos que conhecem latim, químicos com formação musical (o tempo dos Primo Levi, Robert Musil, Elias Canetti chegou definitivamente ao fim)..., e embora possamos ter, depois de Heidegger, sérias dúvidas a respeito do “Humanismo” e da forma como ele concebeu a ideia moderna de Homem (com maiúscula), e às vezes tenhamos que admitir que as “Humanidades não humanizam” (G. Steiner), talvez possamos refletir por um instante sobre o que perdemos (se é que de fato perdemos!) quando o frenesi tecnológico de nosso tempo não se faz acompanhar dos devaneios humanistas (que o homo technologicus diz tratar-se apenas de “ideologias”).
Quando o dramaturgo alemão B. Brecht refez, pela terceira vez, o drama A vida de Galileu, ele afirmava ter sido influenciado por uma entrevista de Otto Oppenheimer que, ao ser perguntado sobre sua participação no Projeto Mannhatan (bomba atômica), respondeu que “(...) era um cientista e, como tal, estava apenas interessado no progresso da ciência. O que os militares ou os políticos fariam disto, não era assunto dele!”. A terceira versão de Brecht tratou exatamente da relação entre a ciência e as consequências sociais de seu uso. Ou seja: a avaliação moral dos conteúdos de nosso saber. O perigo estava naquela afirmação de Galileu (O ensaiador) de que “Deus escreveu o universo em linguagem matemática!”, o que significava que os matemáticos estavam, não apenas mais perto de Deus como podiam até, caso Ele desse uma palhinha, conversar com Ele sobre a Criação... Não é, pois, à toa que os matemáticos se achem meio “divinos” (os estatísticos também!).
Se tivesse lido o célebre livro de Wilde, nosso Artur talvez compreendesse o dilema faustiano que o romance levanta: a juventude e a beleza em troca do prazer hedonista, sensual e dissoluto que uma – aparentemente – eterna juventude lhe permite: um relato irônico e desencantado sobre a relação entre decadência e aparência no interior de uma sociedade moralista (vitoriana), da qual o próprio Wilde será sua desgraçada vítima.
As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que elas nos forneciam uma concepção de “homem”, boa ou má, e as ferramentas que nos ajudavam a avaliar moralmente os fins e os valores de nossas ações técnicas. Ciência sem consciência moral nos dá aquela mesma sensação que deve ter experimentado o Dorian Gray: uma gostosa irresponsabilidade de quem, por estar mais perto de Deus, não precisa dar satisfação aos homens.
(Flávio Brayner é professor titular da UFPE)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sobre Che Guevara, Darcy Ribeiro, Celso Lungaretti e a revista veja

Encontrei involuntariamente há pouco, numa busca que fiz na internet, este meu comentário no sítio do Observatório de Imprensa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/revista-mira-guevara-e-da-tiro-no-pe), no quase longínquo 2007, sobre reportagem de capa revista veja (que teimo em grifar em letras minúsculas) de Outubro daquele ano, quando se completaram 40 anos da morte de Ernesto Che Guevara. Gostei de reler, nem me lembrava dele, e quis registrá-lo aqui.

Eider Dantas do Ó
 Enviado em: 03/10/2007 07:38:43
Como amante da boa leitura, da história, da verdade dos fatos e da boa imprensa, só tenho a lastimar a reportagem de capa da última edição da revista veja. A começar pela legenda de uma das fotos, "sua vida foi uma seqüência de fracassos". Mesmo que fosse verdadeira a afirmação, valeria para Che Guevara, o que bem disse Darcy Ribeiro, ao dedicar o título de Doutor Honoris Causa pela universidade francesa de Sorbonne, às suas "derrotas": "Somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas detestaria estar no lugar de quem venceu". Possivelmente, o que mais incomode veja em sua visão maniqueísta e que tenha sido o motor desta "reportagem investigativa" seja sua crença explicitada na carta ao leitor que abre a edição: "o herói romântico Che é um instrumento facilitador da doutrinação que continuam a fazer em escolas e universidades". Esquece-se veja que estamos em outros tempos, a página da história foi virada, apesar da revista não querer aceitar tal fato e ansiar por uma recaída totalitária. Quanto mais o braço empresarial da editora abril se expande mais a revista se afasta do bom jornalismo. Tristes dos leitores que ainda não se aperceberam disto. Talvez nem devesse ser mencionada neste Observatório, pois há muito deixou de ser jornalismo para ser panfleto da pior qualidade. Excelente e oportuno este artigo de Celso Lungaretti sobre a tal "reportagem".