Flávio Brayner
Publicado no Jornal do Commercio (Recife/PE) em 11/SET/2014
As chamadas “humanidades” podem não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que nos forneciam uma concepção de “homem”
Li em algum lugar que nosso mais
alto laureado acadêmico, o medalhista Fields – Artur Ávila – não gosta de ler!
Confessou, aliás, que o último livro que tentou, mas não passou das primeiras
páginas, foi O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), “lá por 2008 ou 2009!”
Receio que meus colegas das
ciências “exatas”, altos representantes da neo-espécie homo technologicus,
tenham agora o argumento de que precisavam para desqualificar o que ainda resta
de cultura humanista nas Universidades. Imagino mesmo um de meus colegas
titulares diante de sua turma de, digamos, Física ou Estatística: Nosso Artur,
que não lê nada além de física dos sistemas dinâmicos, é medalhista exatamente
porque não perdeu tempo com baboseiras a respeito desta coisa frouxa e
imprecisa chamada “Humanidades”. E eis como é que oitocentos anos depois da
lenda bretã da Tavola Redonda, está se iniciando nosso Ciclo Arturiano!
Ainda me admira muito que haja
médicos-escritores, físicos que conhecem latim, químicos com formação musical
(o tempo dos Primo Levi, Robert Musil, Elias Canetti chegou definitivamente ao
fim)..., e embora possamos ter, depois de Heidegger, sérias dúvidas a respeito
do “Humanismo” e da forma como ele concebeu a ideia moderna de Homem (com
maiúscula), e às vezes tenhamos que admitir que as “Humanidades não humanizam”
(G. Steiner), talvez possamos refletir por um instante sobre o que perdemos (se
é que de fato perdemos!) quando o frenesi tecnológico de nosso tempo não se faz
acompanhar dos devaneios humanistas (que o homo technologicus diz tratar-se
apenas de “ideologias”).
Quando o dramaturgo alemão B.
Brecht refez, pela terceira vez, o drama A vida de Galileu, ele afirmava ter
sido influenciado por uma entrevista de Otto Oppenheimer que, ao ser perguntado
sobre sua participação no Projeto Mannhatan (bomba atômica), respondeu que
“(...) era um cientista e, como tal, estava apenas interessado no progresso da
ciência. O que os militares ou os políticos fariam disto, não era assunto
dele!”. A terceira versão de Brecht tratou exatamente da relação entre a
ciência e as consequências sociais de seu uso. Ou seja: a avaliação moral dos
conteúdos de nosso saber. O perigo estava naquela afirmação de Galileu (O
ensaiador) de que “Deus escreveu o universo em linguagem matemática!”, o que
significava que os matemáticos estavam, não apenas mais perto de Deus como
podiam até, caso Ele desse uma palhinha, conversar com Ele sobre a Criação...
Não é, pois, à toa que os matemáticos se achem meio “divinos” (os estatísticos
também!).
Se tivesse lido o célebre livro
de Wilde, nosso Artur talvez compreendesse o dilema faustiano que o romance
levanta: a juventude e a beleza em troca do prazer hedonista, sensual e
dissoluto que uma – aparentemente – eterna juventude lhe permite: um relato
irônico e desencantado sobre a relação entre decadência e aparência no interior
de uma sociedade moralista (vitoriana), da qual o próprio Wilde será sua
desgraçada vítima.
As chamadas “humanidades” podem
não servir para grande coisa hoje, mas houve um tempo em que elas nos forneciam
uma concepção de “homem”, boa ou má, e as ferramentas que nos ajudavam a
avaliar moralmente os fins e os valores de nossas ações técnicas. Ciência sem
consciência moral nos dá aquela mesma sensação que deve ter experimentado o
Dorian Gray: uma gostosa irresponsabilidade de quem, por estar mais perto de
Deus, não precisa dar satisfação aos homens.
(Flávio Brayner é professor titular da UFPE)
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